13 outubro, 2005

Vamos falar do Referendo

É interessante que já fique claro que este missivista é a favor do "Não". Desde pequeno sou um entusiasta sobre armas, procuro conhecer mais sobre o tema com leituras e pesquisas, conhecer a história e evolução da tecnologia, políticas relacionadas a respeito, e até mesmo faço parte dos quadros de associados da National Rifle Association, nos EUA. E, embora o esporte de prática regular deste missivista seja o arco-e-flecha olímpico, vez e outra acompanha colegas praticantes de tiro prático em seus treinos, tudo com a maior seriedade e uma rígida preocupação com segurança que beira a obsessão – coisa absolutamente necessária.

Daí uma certa demora em tocar no assunto, por incrível que pareça. Mas sabe quando você está tão enfadado de um dado assunto que, mesmo sendo coisa de seu interesse, você realmente não se sente propenso a falar a respeito? Pois é tanta idiotice, tanto achismo, tanta imbecilidade, tanto ignorante-no-tema dando pitaco sem embasamento e sem argumentação bem fundamentada que já estou me aproximando de uma situação em que sequer lembrar da existência do Referendo já basta para me dar asco.

E é importante considerar que isto não ocorre devido apenas a esta ignorância generalizada que está impregnando o "debate" sobre os pontos particulares da questão – se a criminalidade vai cair ou não, contrabando, vítimas, acidentes, estatísticas retiradas do próprio rabo, falta completa de pesquisas sérias a respeito, e poraí afora. O meu problema com o Referendo é mais conceitual, e está principalmente contra ele per se.

Segundo dados do TSE, a última eleição geral no Brasil, para Prefeitos e Vereadores em 2004, custou cerca de 600 milhões de reais. Considerando que o Referendo, por não envolver diretamente as máquinas partidárias e um número grande de candidatos, deve ser então uma eleição mais simples. Ainda assim, é de qualquer modo uma mobilização eleitoral geral no país, e como as eleições brasileiras são no seu todo bem gerenciadas e completamente informatizada e todo os quetais, a conta ainda deve ficar grande, e destes 600 milhões de reais da eleição passada, não é irreal imaginar que esta deva pelo menos custar um terço disto... 200 milhões de reais, digamos.

Agora, o que este tema tem em particular que faz com que ele mereça tamanha logística de se convocar um referendo deste porte para decidir um mero aspecto dele como um todo, considerando que não é o Estatuto do Desarmamento inteiro que está sob discussão, mas apenas o previsto no Artigo 35 dele, sobre a proibição da comercialização daqui para a frente? Outros polêmicos e importantes temas, como ampla reforma política, por exemplo, não são considerados para consulta popular nestes moldes. Mas mesmo que fossem, acredito que não deveriam ser, pois a idéia em si de referendo e plebiscito são péssimas idéias, se levada a cabo com freqüência demasiada, ou como no caso deste Referendo, literalmente nas coxas no que diz respeito ao que, afinal de contas, está sendo debatido e decidido. Pode soar elitista e antidemocrático, mas se avaliarmos a questão com seriedade e de forma racional, veremos que é bem o contrário.

O Fulano de Tal, ou seja, brasileiro médio como um todo, simplesmente não tem o interesse, capacidade, predisposição ou sequer tempo para debruçar sobre questão de tamanha complexidade e avaliar todos os aspectos relacionados. Não é realmente algo ideal, mas é a realidade. E por conseqüência, esta é uma das razões fundamentais para a existência de duas Câmaras Legislativas nesta República, não? O próprio conceito de legislativo é justificável por isto: como os debates e decisões para se gerir uma sociedade complexa e grande como uma nação moderna de cerca de 180 milhões de habitantes são algo que demandaria demais do cidadão médio, a sociedade então optou por um formato de governo onde não se toma todas as decisões diretamente, mas sim se elege representantes para tomarem estas decisões. Pois se não for assim, o resultado acaba sendo não uma república democrática, mas sim uma ditadura da maioria, e as conseqüências podem ser as piores possíveis. Vamos avaliar um exemplo real de como um pouco desta situação pode gerar problemas.

Recentemente, a Califórnia se viu dentro de um grave enrosco fiscal que quase leva este estado dos EUA a falência, de gravidade intensa o bastante para aquele estado decidir por uma "eleição-recall" na qual Arnold Schwarzenegger foi eleito novo Governador do Estado. Mutcho bene. Mas como a Califórnia chegou a tal situação?

No final dos anos 60 e início dos 70, houve na Califórnia um plebiscito no qual a maioria do povo podia decidir pela revogação ou não de diversas taxas públicas relativas a posse imobiliária. O plebiscito aprovou a proposta, e muitas destas taxas foram revogadas. Como este estilo de decisão nunca foi completamente estranho aos americanos em geral, os californianos se animaram com plebiscitos e fizeram outros. Só que nestes outros plebiscitos, a maioria do povo começou a decidir em favor de pontos tais como obrigatoriedade do estado em usar X de sua arrecadação em educação, decidir por construção de obras enormes, decidir por mais modificações fiscais e de arrecadação, etc, etc.

Então as coisas começaram a entrar em contradição: a maioria do povo decidiu por menos taxas. Mas a maioria do povo também decidiu por maior gastos em todas as áreas da administração pública. Isto foi indo, foi indo, e agora, a Califórnia estava na situação patética em que se encontra na ocasião, afundada em dívidas e pedindo a cabeça do Governador, ao que levou a eleição-recall.

E agora, José? A maioria do povo quer que todas as fatias da torta sejam enormes. E não interessa o quanto você explique para determinadas pessoas que se ela votar em X em um dado plebiscito, e em Y em outro, tais coisas serão contraditórias e se anulam mutuamente, ou algo assim. Há sempre determinadas pessoas que não querem saber, ou não se importam o bastante com a questão para avaliarem a coisa com critério e ver os possíveis pontos incompatíveis entre determinadas propostas. Teríamos que esperar de todos os eleitores, cada um deles, fazer ponderações e considerações racionais as quais nem todos tem o discernimento, o bom senso ou meramente o tempo necessário para tal. Com toda a certeza, ia acabar tendo pessoas que iam também querer que todas as fatias da torta fossem grandes.

Isto é um estilo esquizofrênico de governo, e é uma das razões pelas quais considero que a ditadura da maioria não é uma maneira viável de se manter uma sociedade. É para evitar este tipo de coisa que os sistemas democráticos devem possuir casas legislativas fortes e sérias, e relevantes ao exercício da administração pública, e as quais realmente representem o povo. Plebiscitos a torto e a direito é algo que eu acredito que na melhor das hipóteses só seria viável em improváveis sociedades utópicas ou em comunidades muito, muito pequenas, onde um debate detalhado pode ocorrer. Por isto que diversas cidades americanas usam a ferramenta nas chamadas "town meetings", mas porque tais comunidades são pequenas o bastante para isto.